sábado, 10 de janeiro de 2009

Behind These Hazel Eyes

Hoje eu queria deixar de lado as brincadeiras, o sarcasmo, o tom ardiloso, jocoso e debochado deste blog um pouco. Quero falar sobre algo muito sério. Algo que aconteceu hoje e que eu dificilmente esquecerei enquanto viver (ou até um dia quando eu for bem velho e a esclerose ou qualquer uma das doenças da velhice me levem as lembranças embora). Gostaria de contar sobre o dia em que eu salvei uma vida. Eu sei, sei bem, que quem ajuda, quem faz o bem, quem é bondoso de coração não precisa contar pra todo mundo que o faz. Mas este é meu blog, é o lugar onde guardo minhas alegrias, dissabores, decepções, conquistas, derrotas e vitórias. Desta forma, julgo ser este o melhor lugar para que eu guarde estas linhas, pois os detalhes vão-se com os anos e não voltam mais.

Decidi escrever hoje, pois assim as lembranças estão frescas na memória. Sem mais delongas, vamos aos fatos. Era em torno de 19:00 do dia 10 de janeiro de 2008. Estava fazendo um exercício relaxante de fim de tarde às margens do Rio Jacuí, na minha terra natal, Rio Pardo. Tem uma estrada asfaltada, que todos conhecem como Perimetral, com pouco mais de 2.000 metros, que acompanha as margens do rio nos limites da área urbana. É um local bem comum para aqueles que gostam de caminhar, correr, passear e, como em todo local com esta característica, o fim de tarde é o horário mais movimentado. Estava quase no final da corridinha quando avisto um cãozinho deitado às margens da estrada, no acostamento. Ele balançava o rabo e parecia estar apenas descansando. Ao chegar mais perto, vi que algo de muito errado havia acontecido. A respiração dele estava ofegante e havia um corte grande e profundo logo acima da pata dianteira direita. Havia também um rastro de sangue vindo do asfalto onde pedaços de uma lanterna de automóvel denunciavam o ocorrido. Aquele animal indefeso havia sido atropelado e o motorista fugiu sem prestar ajuda. Postei-me ao lado dele, sem saber exatamente o que fazer. Não me ensinaram na faculdade de Ciência da Computação como prestar primeiros socorros à vítimas caninas. Reparei que a mesma pata onde logo acima havia o corte estava dobrada para trás de forma estranha, visivelmente quebrada por completo. Por mais de uma vez, o pobrezinho tentou levantar-se, mas a dor insuportável de apoiar-se sobre uma pata completamente quebrada o fazia deitar-se novamente e chorar tristemente de dor. Pela primeira vez naquele fim de tarde, as lágrimas quiseram correr ante ao sofrimento daquele animalzinho que nada havia feito a ninguém e encontrava-se no mais completo e absoluto abandono. Eu confesso que sinto mais pena de um bichinho do que se fosse uma pessoa. Pessoa raciocina, pessoa pede socorro, sabe se comunicar. Um pessoa atropelada e acordada tem plena consciência do que acabou de acontecer com ela. Imagine um cãozinho. O que ele estava passando naquele momento? Uma hora você está passeando feliz e saudável e de repente um estrondo, uma batida, você está no chão e não se levanta, pois uma dor insuportável se faz sentir na sua patinha. Você está ofegante e chorando baixinho à beira de uma estrada e é uma questão de tempo até que você morra de fome, de sede, de uma hemorragia ou até perder muito sangue.

Eu tinha, obviamente, que fazer algo. Deixá-lo ali que eu não ia. A certa altura, os olhos dele olharam diretamente nos meus. Olharam através de mim. Nunca havia visto aquela expressão no olhar de um animal. ele parecia dizer "Ajude-me, pois quero viver". Ás vezes não compreendo como podem haver pessoas de coração tão vazio e leviano, que conseguem passar e não fazer nada. Dizer "coitadinho" e ir embora. Não vou e nem preciso mencionar do que é feito o coração do monstro que o atropelou e sequer prestou ajuda. Esperei a primeira pessoa com um celular passar, já que eu nunca vou fazer exercícios com o meu. Liguei para casa e pedi à minha irmã que tentasse entrar em contato com um veterinário que fosse até lá o mais rápido possível. Eu não sou nenhum especialista em medicina animal, mas eu sentia que cada segundo era precioso e que meu amiguinho podia me deixar a qualquer instante. Eu não conseguiria suportar a dor daquele pobre cãozinho morrer nos meus braços. Depois de meia dúzia de telefonemas e de um pouco de sorte (ou intervenção Divina) conseguimos que a veterinária do Bidu fosse socorrê-lo. Na triste e longa espera de meia hora até que o socorro chegasse, fiz o que esteve ao meu alcance para ajudá-lo. Contrariando o que diz o bom senso e correndo o risco de ser mordido, ajeitei a patinha quebrada numa posição ereta, pois a posição que ela estava dobrada debaixo do corpo era desoladora. Pedi pra um dos guris curiosos que parou na volta sem saber exatamente o que fazer que descesse na praia e tentasse conseguir um pouco d'água, que ele recusou-se a beber. Enquanto isso, eu tentava retirar moscas, formigas e outros bichos que tentavam aproveitar-se do infortúnio do meu novo amigo.

Com todo jeito do mundo, tirei ele para longe de um formigueiro que havia ali perto e fiquei conversando com ele e afagando a cabeça e o peito enquanto o socorro não chegava. Os curiosos à volta iam se acumulando, mas o que tinha para se fazer já estava feito. Finalmente a veterinária chegou, no que pareceu ser a meia hora mais angustiante e longa da minha vida. Os primeiros diagnósticos não eram bons. Fratura múltipla do omoplata e dois cortes profundos, com possibilidade de perfuração da traquéia e hemorragia interna. Uma coisa era certa: não podíamos deixá-lo ali para morrer. Com a ajuda do marido da veterinária, colocamo-os no carro e partimos em disparada para a clínica, a uma quadra de casa. Chegando na clínica, nosso amigo já ganhou os primeiros cuidados. Ele foi deitado numa mesa, onde começou a tomar os primeiros pontos nos cortes. Felizmente, após um diagnóstimo mais calmo e metódico, foi constatado que os cortes foram apenas em músculos e que não houveram danos internos ou a órgãos vitais. Incrivelmente, pois sou o cara mais cagado que existe pra sangue e cortes, fiquei o tempo todo segurando nosso amigo e olhando fixamente para a agulha que com destreza o costurava. Em momento algum senti náusea ou qualquer tipo de repugna, apesar de ter as mãos e os braços já sujos de sangue.

Depois disso, nosso amigo ganhou um lugar para passar alguns dias no canil. Tomou uma injeção bem caprichada de analgésico e anti-inflamatório e sossegou. O estado de choque havia passado e ele já respirava normalmente. Em uma das horas que nos descuidamos, ele já queria sair porta afora apoiado em três patas. Teimoso e um lutador, o nosso cãozinho. Pegamos ele de volta e o recolocamos no canil, onde ele tomou dois potes d'água com vontade. Deixamos um pratinho de ração ao seu lado e ficamos todos com uma sensação de missão cumprida. Precisa de algumas horas para que a fratura desinche e possa ser colocada uma tala. Segundo a veterinária, ele ficará bom. Poderá ficar com alguma sequela ao andar, dando umas mancadinhas, mas nada que o impeça de viver e ser feliz. Com os olhos marejados, segurei na patinha boa e fiz uma promessa "Eu vou embora, mas não volto pra Porto Alegre sem vir ver você, carinha". Despedi-me com um sorriso daqueles olhinhos que estavam fixos novamente nos meus. O olhar dizia algo diferente agora. Era como se ele estivesse dizendo "Obrigado por esta segunda chance.". Despedi-me da veterinária prometendo passar lá no dia seguinte para ver como nosso campeão estava passando e também para acertar seus honorários. Não havia mais nada para fazer que não fosse ir para casa. Chegando aqui, com um nó na garganta com tudo que havia acontecido, não segurei o choro quando o Bidu veio fazer festa pra mim no portão. Não segurei e nem quis segurar. Eu pensei nele várias vezes enquanto socorria aquele pobrezinho que não teve a mesma sorte que o Bidu teve de ter um lar, uma família. As lágrimas correram de forma natural e desenfreada. Eu não precisava e nem queria que elas parassem.

Neste instante, uma chuva torrencial começa a abater-se sobre Rio Pardo, certamente lavando as manchas de sangue no asfalto do amigo até então desconhecido que salvei da desgraça certa. Pra dizer a verdade, nem posso afirmar com certeza que ele está vivo. O que sei é que tenho o coração em paz de ter feito o que qualquer ser humano com um bom coração teria feito em meu lugar. Nem quero pensar o que seria dele a uma hora dessas, com essa chuvarada que castiga a cidade. Talvez já estivesse morto. Talvez essa chuva o matasse. Sinto-me em paz comigo mesmo sabendo que nesse momento ele está em um canil, fechado, sequinho, com água e comida, medicado e tratado. Agora é só torcer pra ele se recuperar logo e sair aprontando por aí. No que surgir alguma novidade tento avisar o pessoal por aqui.

Sem mais.

Namastê.

Adendo ao texto, 11 de janeiro de 2009, 20:52:
Pessoal, gostaria de ser o portador de boas novas, mas infelizmente isto não é possível. Apesar da valentia, nosso amiguinho não resistiu a uma hemorragia interna e se foi ontem à noite. Parece que os ferimentos dele foram mais graves do que pareciam ser. Ao receber a ligação da veterinária na manhã de hoje, só uma idéia me passou pela cabeça: dar e ele um enterro digno. Recusei terminantemente a sugestão dada pela dona da clínica de chamar um rapaz que sempre se encarrega de enterrar animaizinhos que morrem por lá. Eu não teria passado por tudo que passei para deixar o bichinho ser levado por um estranho sabe-se lá para onde. Ele foi colocado dentro de um saco grande, forrei bem o porta-malas e levei ele para o mesmo lugar onde todos cãezinhos que já foram amados pela família Ene estão: na nossa Fazenda. Ele foi enterrado junto a um lindo e copado mato de eucaliptos que fica às margens de um açude, fazendo companhia aos outros dois cãezinhos que já estavam lá. Fica a certeza que ele teve um fim digno e sem dor. Assombra-me o pensamento a idéia que se ele tivesse ficado naquela estrada ele morreria da mesma forma sobre uma forte chuva de forma ingrata e dolorosa. Como uma amiga disse-me no msn, talvez ele nunca houvera sido tão bem cuidado em sua vida como naqueles últimos instantes.

Descanse em paz, amiguinho. Acho que encontrou um lugar calmo e pacífico para seu derradeiro descanso. Nem cheguei a lhe colocar um nome, mas estará para sempre no meu coração. Assim como estará para sempre ocupando um lugar de honra junto dos outros cães que tiveram a sorte de ser tão amados em vida como você provavelmente nunca foi.



*
Kelly Clarkson - Behind These Hazel Eyes

11 comentários:

Anônimo disse...

You made me cry!

Anônimo disse...

Amarraram um nós na minha garganta

Horizonte disse...

Parabéns...são por pessoas que nem tu e histórias que essas (tanto de salvamento de animais ou pessoas) que reinteram a frase que o mundo tem salvação, é só questão de atitude.
Forte abraço ao nosso herói!

Guiga disse...

Thiaguinho, Thiaguinho...que bonito isso que tu fizeste! Não podemos salvar todos mas se pudermos salvar UM, já faz a diferença!
E lembrei duma frase que uma amigona me disse uma vez: "Eu compenso o mal que faço às vacas, fazendo bem aos cachorros". Serve pra ti! Hehehehe!
Tá lindo teu post. It made me cry too!
Depois manda notícias do guri!

Anônimo disse...

Putz.... pena o animalzinho ter se ido...
:(
Well, fica a tentativa pelo menos....
[]'s

Thiago disse...

Ao menos ele teve um final digno. Este peso não carrego na consciência e posso dormir tranquilo. Ele deve estar num lugar mto melhor a uma altura dessas.

Anônimo disse...

É... pura bucha. Ver um bichinho sofrendo é definitivamente terrível. Bueno, tu fez o que pôde... Well done, pequeno gafanhoto!
[]'s

Anônimo disse...

É impressionante como tem gente ruim no mundo e tão poucas pessoas brilhantes e honrosas como VC! Aliás, muitos desses "animais" são mais humanos do que a gente!

Um dos meus maiores temores dirigindo é atropelar algum animal, não sei como eu ficaria se acontecesse uma coisa dessas, como seria carregar essa culpa e talves não soubesse o que fazer na hora! Mas depois do depoimento que deu, posso ter certeza que em uma situação dessas a gente DEVE fazer alguma coisa p/ salvar ou pelo menos aliviar a dor do bixinho!

O pobrezinho não sobreviveu, mas como foi dito aqui, ele passou as últimas horas confortado por ter sido bem tratado e por ter encontrado um amigo como vc!

É por essas e outras atitudes que admiro cada vez mais o nobre colega!

Drika Bruzza disse...

Tem coisas que eu me preocupo mais... por exemplo quando vejo uma criança da África com moscas no rosto e fome absoluta. Isso me preocupa, e justamente por me preocupar com pessoas fico feliz que alguém se preocupe com bicho também.
Não fiquei tão triste assim, mas entendo a tua tristeza.
Me identifiquei mais com o cachorro e com a situação toda de estar lá, ser olhado, avaliado, doer infinito, não conseguir se mexer. E assim como com ele, um cara que eu não tenho a menor idéia de quem é ficou lá, me afagando e perguntando quem eu era, prezando pela minha consciência, até eu esperar os 42 minutos mais longos da minha vida até a SAMU chegar.
Eu aproveitaria essa tua sensação de dever cumprido pra alavancar uma tentativa de outros modos de ajuda... Quem sabe isso se torne rotina e teremos mais uma boa alma na luta de salvar o mundo.
O primeiro passo tu já deu, e muitos outros, quando combinamos de comprar o triciclo praquele piá, ou realizar o pequeno desejo da garota que queria um celular, e que sofre com um câncer e muito poucas chances, mas hoje certamente mais realizada.
Pequenas ações nos transformam... Fazem com que quando a gente respire fundo, não respire sozinho. Que nosso sorriso não seja só um, e que possamos fazer parte de muitos outros sorrisos.
Eu tive a chance de viver de novo e hoje já não sei viver sem estar envolvida com outras vidas. Algumas delas, pessoas especiais, outras, pessoas como tu, que me orgulham. Depois de muito tempo juntos, tanto tempo como amigos, já mudamos muito do que seria a vida ao nosso redor. Eu e tu. Eu, pelas crianças, pessoas com necessidades especiais, sem perspectiva. Tu, pelos animais, a ponto de dar-lhe um fim digno.
Somos uma estrelinha no meio de um mar de outras pessoas boas do planeta... e eu me sinto muito feliz por fazer parte da tua vida.

Obrigada, pelo cachorrinho...
e muito obrigada por mim.

Anônimo disse...

Ao terminar de ler, fiquei de olhos marejados e um aperto no coração!

Carla Beatriz disse...

Ene,

Foi a primeira vez que vejo que podes ser um cara sensível e humano, com tudo o que fizeste pelo cãozinho.

Que Deus te abençoe por isso!